Para manter privilégios sociais, reproduzimos relações de poder sobre os animais, transformando-os em objetos. É o que defende o biólogo Róber Freitas Bachinski, membro fundador e diretor do Instituto 1R de Promoção e Pesquisa para Substituição da Experimentação Animal. A argumentação de Bachinski se deu em entrevista concedida para o Instituto Humanitas UNISINOS (IHU), publicada neste mês.
Mestre em Ciências, com ênfase em Toxicologia Ambiental, e doutor em Ciências e Biotecnologia, Bachinski atua na área de Neurociência, com ênfase em Neurotoxicologia e Neurofarmacologia, e em Métodos Alternativos ao Uso de Animais.
Na entrevista concedida para o IHU, o biólogo citou São Francisco de Assis, a quem ele vê como “alguém que, já naquela época, questionou o seu centro em relação ao mundo, algo que talvez apenas agora nós estejamos preparados para questionar enquanto humanidade”. Ao “dissolver o seu centro”, ele se permitiu “ser igual ao mais diferente, ser naturalmente igual, livre da separatividade”.
Para Bachinski, “São Francisco de Assis, ao olhar nos olhos de um animal e se considerar irmão dele, não estava fazendo uma comparação de igualdade ao animal, mas estava fundindo a sua alma à natureza, tendo o autoconhecimento de que os animais, a natureza e ele, enquanto humano, são fruto da mesma realidade em uma relação de empatia que transcende o ‘eu’ e a separatividade do corpo físico”.
Ele argumenta que essa mudança de perspectiva amplia a nossa visão de mundo e nosso entendimento do que é importante. “No momento em que se desconstrói uma relação de poder que separa o eu (sujeito) do outro (objeto), o universo de interesses amplia – e também o universo de considerações morais”.
Relações de poder no uso de animais em pesquisa
Defensor da substituição do uso de animais em pesquisa, o biólogo explica que o animal, no contexto científico, pode ter sido transformado socialmente em um objeto de experimentação científica. O pretexto, que seria o intuito de conhecer algo ou testar o efeito de um fármaco ou droga, retira as considerações morais sobre os animais. “Ou seja, não é um rato – diz o mecanismo de defesa do ego -, é um objeto necessário para a saúde humana”.
“Esta é uma racionalização muito utilizada para a exploração do outro: um ‘mal necessário’”, explica. “Conforme fui entendendo a história da experimentação animal, fui também entendendo a relação de poder por onde ela se implementa”.
Contudo, essa racionalização já não se sustenta. “O animal, na ciência, não configura um objeto de experimentação, pois ele não é um modelo para representação fisiológica do humano e apresenta várias falhas metodológicas e diversas anomalias de previsão do modelo baseado em outras espécies animais para a espécie Homo sapiens”, diz o cientista.
Para ele, “o animal, na ciência, é um objeto de proteção moral aos humanos vulneráveis. Ele foi incluído primeiramente para proteger os humanos vulneráveis dos crimes científicos exatamente pela separatividade. Quando, em uma relação de poder extremamente polarizada, um grupo da espécie Homo sapiens perde socialmente a característica de humano, ou seja, se afasta daquilo que um grupo de mais poder considera como igual, ele também pode ter privilégios retirados e ser transformado em objeto. Isso acontece na escravidão, ou no nazismo, e acontece diariamente sob várias relações de opressão na atualidade”.
Conforme Bachinski, as iniciativas de mudança esbarram em privilégios do poder e construções inconscientes. “O grande desafio é olhar para nós mesmos e ver quais relações de poder sustentamos enquanto privilegiados. Largar os privilégios é uma decisão individual. É um desafio também por serem construções inconscientes, escondidas em mecanismos de defesa”.
“Ninguém deseja ser opressor, mas reproduzimos relações de poder através da manutenção de privilégios sociais. Essas relações são uma busca por vantagens em relação à vida, atuações colonizantes do outro, que transformam o outro em objeto. O nosso consumo, a disposição social, a consideração moral, a formação política, tudo passa por uma construção social moldada em relações de poder e, se não observarmos nossa práxis, continuaremos a reproduzir como algo natural, sem conseguir sequer ver a demanda do outro, muitas vezes sem conhecer o outro que oprimimos. Mas o outro só existe quando existe a relação sujeito-objeto, quando existe relação de poder. Desconstruir o outro como objeto e reconhecer ele com seus interesses tão importantes quanto os nossos, é o desafio. É olhar o mundo de frente e ter coragem de largar os privilégios”.
Na produção de alimentos, as relações de poder dos humanos sobre os animais causam problemas ambientais e sociais
Na entrevista, Bachinski comenta também impactos ambientais e os desperdícios de recursos promovidos pela pecuária. Segundo ele, 90% dos impactos gerados pelas monoculturas são desperdiçados quando elas são utilizadas para alimentar animais destinados à produção de carne, ovos ou laticínios. “Em torno de 79% da soja brasileira é utilizada para produção de ração. E a soja representa 49% da produção de grãos do Brasil. Assim, em torno de 38% da produção de grãos no Brasil é utilizada para alimentar animais”.
“E apenas 10% disso, ou seja, 3,8% realmente contribuirá com a nutrição da população que se alimenta do animal”, complementa. “Indiretamente, no processo de produção de ração animal, a humanidade perde 34,2% da produção de grãos brasileiros que poderiam alimentar diretamente os humanos em uma economia alimentar baseada em plantas”.
Tanto o pasto quanto a monocultura destinada à alimentação dos animais de produção afetam também a biodiversidade. Isso porque, por exemplo, restringem os territórios dos animais daquela região. “Muitas vezes, espécies básicas necessárias para aquele bioma desaparecem, gerando o desaparecimento de uma linha de sucessão ecológica”. Essa alteração compromete a cadeia alimentar.
De acordo com Bachinski, em 2018, o Brasil utilizava 664.784 km² para a agricultura. Nessa ocasião, uma área de 227.356 km² foi utilizada apenas para alimentar animais destinados à alimentação humana, uma área maior que o estado de Roraima.
Ele acrescenta ainda que 70% da produção de soja brasileira é para exportação, às custas do incremento de problemas ambientais e sociais. “Juntamente com essa perda de grãos e exportação vão-se todos os subsídios necessários para a produção, como o desgaste da terra e a perda local de minerais, gasto de água, modificação dos cursos dos rios, diminuição de habitats, queimadas, trabalho humano, uso de implementos agrícolas e sofrimentos envolvidos na negação de direitos básicos aos animais”.
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